Eu estava sozinha em um dos bancos do ônibus, com
meus pais logo atrás.
Então ele chegou, junto com seus prováveis 40 anos,
e sentou ao meu lado
olhava em minha direção, mas eu, aos dez anos, só
pude imaginar que apenas olhava para janela
olhava pra baixo
pras minhas pernas
- as pernas de uma menina de dez anos -
A mão dele escorregava devagar
eu me encolhia
só tinha dez anos, não percebi sua intenção
não estava pedindo
nem consentindo
achei apenas que ele era espaçoso
e não tinha percebido a mão perto demais de mim
mas eu me encolhia
a mão não parava
cada vez mais perto
até que minha mãe me tirou dali e explicou
"um tarado, um pedófilo"
queria me tocar; tocar uma criança
Ele pareceu insatisfeito quando avisei que ia sair
do banco
não acreditou que ia sair, de fato
amansou o tom quando disse que ia sentar junto aos
meus pais
e, aos dez anos, me ensinaram
(e senti na pele)
que devia sentir medo quando um homem se
aproximasse demais
que devia fugir
que não devia aceitar nada em que não houvesse
consentimento
(uma pena que não depende só de mim)
Conselhos que são frequentes na vida adulta e na
adolescência
mas que aos 10 anos eu já sabia
-
Um outro ele estava no bar em frente a minha casa
fixava os olhos sempre que apontava na janela
mandava beijos, fazia gestos obscenos
para uma criança, agora com 12 anos
O mês do qual esse dia fez parte foi simbólico
ainda nele, um homem tentou entrar em minha casa
quando eu estava sozinha
distraída e lendo, na porta de entrada
chegou devagar
olhou pros lados
e não entrou porque corri e tranquei a porta
as janelas
espiei a rua pelas frestas
e ele saía do pátio cuidadoso
Nos mesmos 30 dias um carro preto me seguiu desde a
escola até minha casa
deu voltas nas quadras para sempre estar por perto
passava devagar ao meu lado
e me olhava como um urubu
Minha mãe, ainda hoje, conta para os conhecidos
que essa foi a primeira vez que entrei em depressão
afinal
como uma criança deve lidar com a malícia e a
perversão?
e as ameaças? e os assédios?
como uma mulher adulta deve lidar?
nenhuma deveria
nem conhecer
nem lidar
nem sofrer com o patriarcado
ele não deveria existir.
Mas existe
e não faz um mês que, agora aos 20 anos, fui
seguida
até o trabalho, na chuva
o carro parou do meu lado
mexeu comigo
andei rápido, mas ele foi mais
corri
ele - mais um! - subiu a rua e tentou me fechar
tentou-me-fechar
corri, escorregando, na chuva
com medo
perseguida por um tempo que pareceu longo demais
perseguida
por ser uma mulher sozinha na rua.
E todo dia, algum ele acha normal fazer comentários
sobre nossos corpos
(independente da roupa, caralho)
normal passar devagar do meu lado
passar perto demais de mim em uma rua enorme e
vazia
parar o que está fazendo para me estuprar com os
olhos
e
achar
normal.
Todo dia algum ele se indigna com a "má
educação feminina"
com as cotoveladas que preciso dar em homens que
não sabem seu espaço no ônibus
com a jogada de corpo necessária para que um
estranho não se esfregue em mim
com o ódio que eu destilo quando algum ele tenta
chamar minha atenção na rua
com a cara feia que faço para desconhecidos que me
cumprimentam
com explícitas segundas intenções na voz
Não é raro
nem periódico
nem "às vezes"
é todo dia
todo maldito dia
de formas que, volta e meia, assumo que eu nem
fazia ideia existir
E todo dia
alguém acha que assédio é cantada
que o medo é drama
que a maldita crise de ansiedade na rua
que me atinge mais do que eu gostaria
é exagero.
Exagero é achar que minha buceta é símbolo de
submissão
equívoco achar
que minha voz vai ser mansa
comportamento passivo
para agradar alguns pares de bolas
que esqueceram que o mundo também é nosso
e que ainda não sabem, aparentemente
que não somos deles
não queremos
não precisamos
e que fazemos questão de gritar isso
em suas caras violentas
egocêntricas
machistas
e patéticas.
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