"Alerta laranja" em Montevideo

Manhã cinzenta em Montevideo, por Fábio Becker


A manhã escura prometia muita chuva, e a forte ventania deixava claro que os próximos dias seriam difíceis. Saímos à rua logo cedo, para aproveitarmos nosso penúltimo dia na cidade, na companhia de nossas capas de chuva emprestadas.

Logo começou a chover o suficiente para criar pequenos rios ao longo das calçadas, obrigando a pular todos aqueles que precisavam atravessar as ruas. As ruas estavam desertas, com exceção dos poucos que pareciam se dirigir aos seus locais de trabalho - em seus rostos, a clássica expressão de insatisfação de quem é obrigado a acordar cedo em um "dia ruim".

Não havia nenhum turista naquelas ruas encharcadas, e logo me senti como se estivesse observando a cena de um outro plano dimensional, como se não estivesse ali de verdade: eu, vivendo meus dias de liberdade em outro país em um feriado prolongado e os outros, enfrentando mais um dia comum em suas vidas - os mesmos dias que eu também costumo detestar. Ali eu via de perto a vida em sua mais pura normalidade e sutil beleza, mas de uma forma melhor: eu deixei de lado a minha vida, para reconhecer e observar a das outras pessoas.


Alerta laranja

O leve desfoque da foto, tirada por mim, faz parte da
composição sensorial: a ventania tornava difícil até as
tarefas mais simples, como registrar um momento
No dia seguinte, a ventania havia aumentado, deixando a cidade em "alerta laranja" - mais tarde, em casa, eu pesquisaria sobre e descobriria que o "alerta laranja" significa forte ventania ou tempestade, e que a orientação nesses casos é tentar não sair de casa. Acima dele, apenas o "alerta vermelho".

Nesse dia, eu vi pessoas apoiadas em postes por conta da ventania. Vi as ondas do mar ficarem fortes a ponto de espalhar água pela avenida, passando por cima até mesmo da enorme barreira que as separa da cidade. Vi pessoas projetar o corpo para frente para conseguir andar e vi a cidade se esvaziar quando o dia ainda estava claro - enquanto eu segurava firme o celular com as duas mãos para filmar a revolta do mar, torcendo para que ele não voasse também.

Vi de perto como as pessoas levam a vida nos dias de "alerta laranja" - que devem ser comuns na cidade, já que foi criado uma escala de cores para definir cada intensidade. Observei pessoas fazendo compras no mercado, pegando ônibus e arrumando suas barracas na feira - e, logo depois, correndo para buscar os produtos que o vento havia levado.

É incrível a intensidade de contato que estabelecemos com a humanidade - a nossa e das outros - quando vemos de perto um povo diferente daquele do qual viemos. Vemos fotos dos destinos dos sonhos a todo instante nas redes sociais, ficamos encantados e sonhadores diante de paisagens famosas, paradisíacas e históricas, mas só sentimos na pele o que são esses lugares, de fato, quando prestamos atenção nos seus moradores.

Um breve momento de sol no dia da ventania, também
registrado por Fábio Becker
A proximidade é um fator importante quando se trata de intensidade de relações. As tragédias, infelizmente, nos lembram disso. Uma notícia ruim que queima no peito das pessoas próximas ao local onde ela aconteceu, não vai queimar no peito de pessoas do outro lado do mundo. Elas se sensibilizarão, sentirão pesar e tristeza, talvez até rezarão pelos envolvidos, mas não vão queimar.

Quando conhecemos um povo de perto, nosso peito queima - de um jeito bom, dessa vez. Reconhecemos a sua existência, ouvimos as suas histórias, observamos seu jeito de levar a vida - no Uruguai, um jeito muito calmo, aliás; um oásis no meio da era da pressa e da rapidez. A intensidade dessa relação de um indivíduo com outro povo obviamente se mostra distinta entre uma experiência e outra: minha viagem de quatro dias foi incrível e me fez conhecer muito do nosso país vizinho, mas essa experiência jamais seria comparável a de alguém que, por exemplo, tenha vivido lá por mais tempo. 

O valioso, por fim, é o laço que se cria quando se conhece um povo, ou uma pessoa - qualquer pessoa - de perto. Mesmo que não haja contato posterior, que a vida corrida não te permita ver alguém tanto quanto você gostaria, ou que você demore anos para cogitar visitar um lugar novamente: as experiências que vivemos e as coisas que aprendemos com os outros nunca vão embora de nós.

Ainda bem.

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